Há vários relatos mitológicos da origem sagrada do feminino. Para entendermos o mito temos que usar a metafísica. O que é a metafísica? É o movimento do espírito para compreender a realidade. É o pensamento que pensa a origem de sua própria essência. É a investigação da questão sobre o sentido e a verdade do Ser. É o empenho que se faz para elucidar o Ser que vivemos. É colocar o Ser numa representação para que ele tenha luz e nos ajude a ler e a entender o real. E o mito? O que é mesmo um mito? É uma profunda intuição compreensiva da realidade expressa numa linguagem fantasiosa. As intuições do mito são externas em suas revelações porque exprimem os mais íntimos níveis de estruturação da psique. Então, vamos refletir este mito.
Narra uma lenda “Inche” hindu que Deus fez uma mistura de tudo que existe de melhor, e moldou o Ser Feminino. Assim, nasceu a mulher com a sua graciosa presença, bela, forte, sedutora, atenta e com a capacidade de se voltar de imediato para o Bem. Deus a admirou muito e a ofereceu de presente ao homem para que ele convivesse com esta obra-prima.
Sete dias depois, um tanto confuso, o homem procurou Deus e lhe disse: “Senhor, a criatura que me deste envenena a minha vida, toma conta de todos os tecidos do meu corpo e de minha alma. Enfeitiça-me com seus encantos; fala sem cessar, às vezes se lamenta, chora e ri ao mesmo tempo; está sempre sendo uma provocação para mim; viver ao lado dela é não ter um só instante de solidão e sossego. Suplico-te, Senhor, aceita-a de volta. Não posso viver com ela!”
E Deus recebeu de volta a mulher. Passados sete dias, o homem voltou a procurar Deus e disse: “Senhor, minha vida é a mais completa solidão desde que devolvi a mulher. Ela cantava, dançava na minha frente. Ela brincava comigo e dava o sol de seu sorriso. E não há fruto mais delicioso que se compare às suas carícias. Peço-te que a devolvas para mim. Não posso viver sem ela!” E Deus devolveu-lhe a mulher.
Passaram-se mais sete dias; e lá voltou o homem dizendo: “Senhor, fica com ela. Não dá mais! Ela me causa mais aborrecimentos que alegria. Não quero mais!” E Deus disse: “Homem, vai para casa com tua Mulher! Aprende a conviver com ela! Se eu aceitá-la de volta, daqui a sete dias virás de novo pedi-la!” E o homem se retirou pensando: “Como a minha vida é estranha e intensa! Não posso viver com ela, mas não posso viver sem ela!”
O feminino moldado por Deus existe como a dimensão do humano pleno de mistério, profundidade, interioridade, terra, sentimento, receptividade, poder gerador, ludicidade, vitalidade e liderança, intuição, amor atemporal e sublimação da subjetividade. Completa o outro pólo humano masculino suscitador do sol, do tempo, do impulso, poder, ordem, exterioridade, objetividade e razão.
O feminino moldado por Deus é contínuo movimento de transformação. É serenidade na agressividade, é transcendência na imanência, é a clareza que sabe distinguir a capacidade de ordenar o caos e criar um futuro baseado em sonhos. É o repouso após a batalha, o mistério que desafia a curiosidade, uma permanente saudade do que ainda não somos e deveríamos ser.
O feminino moldado por Deus é fonte original da vida que emerge já evoluída no colo da ternura. É a plenitude vital, o poder do amor que sabe organizar, a dominação sem opressão. É a constante tarefa de cada ser humano, no horizonte da sua condição biológica, de integrar esta raiz sagrada em seu projeto de Ser. Nem sempre esta é uma tarefa fácil. O processo de conquista do humano pleno implica o natural e o obscuro, o passional e o objetivo, o misterioso e o racional. Pegar ou largar? Devolver ou assumir?
A questão é bem maior. É integrar! Deus deu uma obra-prima como presente. É a pérola preciosa da existência. Uma pérola não se come, mas contempla-se.
Contemplar é trazer para a moradia do templo, isto é, transformar o relacional num espaço sagrado. Nós somos o que colocamos no espaço da interioridade. Cada pessoa é chamada a realizar a sua humanidade masculina e feminina do melhor modo possível. Não posso viver sem esta verdade!
Ao visitar uma galeria de arte e se deparar com a grandeza de tanta obra; no ficar estático e embevecido diante de uma obra-prima, pergunta-se: quem é o autor? Ver bem uma obra é ver bem o criador. Toda inspiração é sagrada, por isso não posso viver sem ela.
Vitório Mazzuco